Rizzatto Nunes: A lei seca e o direito do cidadão-consumidor de se locomover livremente – 5-12-2011
A lei seca e o direito do
cidadão-consumidor de se locomover livremente – 5-12-2011
Por Rizzatto Nunes
Abrahan
Lincoln disse que não se pode mentir o tempo todo, enganando todo mundo. Já
Adolf Hitler dizia que qualquer mentira acaba entrando pela goela da multidão hipnotizada, por mais absurda que
seja. Podemos acrescentar que, se alguma
coisa for feita diuturna e rotineiramente com ares de normalidade, acaba sendo
aceita por todos ou ao menos pela maioria como algo natural e, consequentemente,
aceito como norma válida.
Os
meios de comunicação batem tanto na tecla da chamada lei seca com suas numerosas
blitze que, aos poucos, as pessoas
vão aceitando o fato como válido. Mas, a verdade é que, do ponto de vista
jurídico, isso está longe de ser correto.
Volto
a um assunto que tratei mais de uma vez e que, penso, precisa ser compreendido
adequadamente pela sociedade. Lembro que não existe uma estratégia bem
elaborada para resolver o problema do consumo do álcool no país, conforme
mostrei em meu artigo “As bebidas
alcoólicas e o consumidor” publicado em agosto p.p.. Aliás, é de se
desconfiar da existência de um real interesse em resolver o problema.
Muito
bem. Meu amigo Walter Ego diz: “Uma das
claras diferenças entre uma democracia e uma ditadura é a de que nesta toda
pessoa da sociedade civil é suspeita (de algo...); naquela, todo cidadão é
inocente até prova (contundente) em contrário. Numa democracia, ninguém é
suspeito até agir como tal”. E ele complementa perguntando: “Dirigir um veículo é uma atitude suspeita?”
Quando
era estudante da graduação em Direito na PUC/SP, nos idos dos anos setenta,
sonhava -- todos nós sonhávamos -- um dia ver a democracia real instituída no
Brasil. A ditadura acabou, vieram as
eleições livres e diretas e ficamos esperando. Quando surgiu a Constituição
Federal de 1988, nossa esperança aumentou: afinal, era o melhor, mais
democrático, mais livre e mais claro e extenso texto de garantias ao cidadão
jamais estabelecido antes por aqui. Uma luz verdadeira se acendia dentro
do túnel.
O
tempo passou e se percebe que ainda é difícil estabelecer-se um real
Estado Democrático de Direito. Como estudante de Direito já há 36 anos fico
triste e até, diria, um pouco descorçoado. É incrível como o Poder, em todas as
esferas, viola com seus procedimentos as garantias constitucionais. Foi-se a
ditadura, mas permaneceu, de vários modos, a mentalidade profundamente
enraizada do autoritarismo. As ações policiais, por exemplo, dirigidas por
altos escalões, muitas vezes parecem ter como técnica de controle e
investigação apenas e tão somente o espalhafatoso instrumento das blitze,
que normalmente produzem muito pouco resultado além do espetáculo e de
atrapalhar a vida dos cidadãos, que já têm muita dificuldade de se locomover
pelas ruas das cidades.
Veja-se
o caso da atual e chamada lei seca e das ações praticadas contra a pessoa de
bem. Esta é parada na via pública pela polícia, apenas e tão somente porque está
dirigindo seu veículo. Pergunto: qual o elemento objetivo e legal que permite esse
tipo de abordagem? Nenhum. Não há suspeita, não há comportamento perigoso, não
há desvio de conduta nem manobra capaz de causar dano a outrem. A pessoa apenas
está ao volante!
Há,
apenas, o fato de estar dirigindo um veículo após ter saído de um estabelecimento
comercial ou nem isso: apenas por estar passando naquele local naquele momento.
Um mero acaso. Isto é, trata-se de uma circunstância corriqueira de exercício
da cidadania. Nessas condições a abordagem é ilegal. É abertamente ilegal.
De
onde o Estado extrai o direito de evitar a locomoção de um pai de família que
sai para jantar com sua esposa ou filhos? Ou com amigos, depois de um árduo dia
de trabalho?
Claro
que uma abordagem desse tipo seria legítima se, por exemplo, a pessoa entrasse
cambaleando num veículo para dirigi-lo. Esse seria um dado objetivo válido, que
geraria suspeita suficiente para a ação. Nesse caso, o policial é testemunha ocular e
tem o dever de agir. Ou, então, se o veículo faz ziguezague na rua, é preciso
pará-lo. Na verdade, se é para fazer blitz, então é muito mais simples
manter policiais em cada porta de bar, danceteria, boate, discoteca, rave
ou o que seja e impedir que o ébrio entre no veículo.
Mas,
se a pessoa está na rua livremente, apenas exercendo seu direto de locomoção
assegurado constitucionalmente, não pode ser abordada e nem se lhe podem
impingir conduta que ele não se disponha a fazer, sem base objetiva para tanto,
como por exemplo, exigir o teste do bafômetro.
Estar
dirigindo um veículo automotor não é, repito, fato jurídico de per si capaz de gerar o direito da
autoridade policial exigir um teste – qualquer que seja ele – de que o motorista
está embriagado ou ao menos ter ingerido álcool. Daí que, pedir que um
motorista que não apresenta nenhum
traço, nenhum comportamento suspeito de estar alcoolizado, que faça o teste do
bafômetro é abuso de direito e, no caso, abuso de autoridade. Não importa quem
seja o motorista.
E,
antes de analisar as normas jurídicas envolvidas, gostaria de lembrar um fato
irretorquível: o da ineficácia da lei e das ações policiais. Os acidentes com
veículos automotores continuam acontecendo em índices alarmantes, com ou sem
lei, como têm mostrado os meios de comunicação. (O problema envolve outros pontos: falta de
educação, respeito ao próximo, disciplina para vida em sociedade, mudança dos
padrões de consumo, limitação da publicidade e dos pontos de venda, como
mostrei em meu artigo citado, o aumento da potência dos veículos etc.). E pior:
as blitze não só violam os condutores que não ingeriram álcool
e que sem veem obrigados a praticar ato
contra sua vontade sem base legal (soprar no bafômetro) como não conseguem
alcançar o condutor que esteja embriagado, porque este simplesmente se nega a
fazer o teste. Simples assim. Relembremos, então, a questão jurídica.
Em
primeiro lugar, leiamos a nova redação do artigo 306 do Código de Trânsito
Brasileiro (CTB): “Art. 306.
Conduzir veículo automotor, na via pública, estando com concentração de
álcool por litro de sangue igual ou superior a 6 (seis) decigramas, ou sob a
influência de qualquer outra substância psicoativa que determine dependência:
Muito
bem. Trata-se de um crime de perigo, mas perigo concreto real, ao contrário do
que as autoridades policiais estão adotando. O Professor Luiz Flávio Gomes, em
artigo publicado também no site Migalhas, deixou clara qual deve ser a
interpretação do referido dispositivo.
Diz
ele que não basta ter ingerido certa quantidade de álcool. É preciso também
estar sob influência dele. Isso porque, conforme ensina o professor, a
segunda parte da regra legal (“sob influência de qualquer outra substância...”)_deve
valer também para a primeira parte que trata do álcool. E ele está certo, pois
a disjuntiva “ou” remete o conteúdo da segundo parte do texto à primeira parte.
Dou
também outra razão: A própria lei 11.705 que alterou o CTB assim o diz. O seu
art. 7º alterou a lei 9.294/96 modificando a redação do art. 4º-A dessa lei,
que passou a ter a seguinte dicção: “Art. 4º- A Na parte interna dos locais
em que se vende bebida alcoólica, deverá ser afixado advertência escrita de
forma legível e ostensiva de que é crime dirigir sob a influência de álcool,
punível com detenção.” (grifei)
Pergunto:
o que significa “estar sob influência”? O professor Luiz Flávio Gomes responde:
estar sob influência exige a exteriorização de um fato, de um plus que
vai além da existência do álcool no corpo.
No
caso em discussão, esse fato seria a direção anormal. No exemplo que dei acima,
a direção em ziguezague. Caso contrário, como diz o citado jurista, estar-se-ia
violando o princípio constitucional implícito da ofensividade, pois a mera
ingestão de álcool sem significar perigo concreto, ainda que indeterminado,
geraria tipo penal de um crime abstrato,
algo inadmitido no direito.
E,
em reforço, lembro, citando mais uma vez o professor, que para a caracterização da infração administrativa,
o art. 165 do CTB, também alterado, dispõe: “dirigir
sob influência do álcool”. Logo, se
para a mera infração administrativa (que
é o menos) há que se constatar influência, para o crime (que é o mais) com
muito maior razão.
Digo
mais. Guardados os limites de cada caso de abordagem, pode ocorrer um outro
crime: o de abuso de autoridade. A lei 4.898 define os crimes de abuso de autoridade
(ironicamente é uma Lei do período autoritário: 09-12-1965). Dentre eles,
destaco o atentado à liberdade de locomoção e o atentado à incolumidade física
do indivíduo (art. 3º, “a” e “i”).
É
um crime doloso, que demanda ânimo de praticá-lo e pode se dar também por
omissão, como demonstram as várias
decisões judiciais condenando administradores públicos em geral elencadas pelos
Profs. Gilberto e Vladimir Passos de Freitas no livro “Abuso de Autoridade”
(Publicado pela Editora Revista dos Tribunais, 9ª, ed, SP:2001).
Assim,
se o indivíduo não está praticando nenhum delito, a autoridade fiscal ou
policial não pode levá-lo preso. O crime
pode estar sendo cometido tanto pela autoridade que lhe prende, como pela que
não lhe solta. É possível, pois,
processar a autoridade pelo crime de abuso.
No
assunto atual das blitze de lei seca, pode surgir uma dúvida em relação a
quem está praticando o abuso, pois o policial civil ou militar está cumprindo
ordens superiores. Nesse caso, se a ordem não é manifestamente ilegal, quem
comete o crime é o comandante da operação ou seus superiores, que pode chegar
até mesmo ao Secretário de Estado responsável, pois desses se espera o
cumprimento estrito do sistema constitucional em vigor.
De
todo modo, deixo anotado que o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, disse
com todas as letras que “sendo exigível
dos agentes da lei o conhecimento da garantia constitucional de que ninguém,
salvo o flagrante, pode ser detido e preso a não ser por ordem da autoridade
judiciária competente; seu
descumprimento configura abuso de autoridade manifesto, que não exime de
responsabilidade o superior e seus subordinados” (Decisão publicada na
revista RJTJRS 170/138 e citada na obra dos irmãos Passos de Freitas).
O
trágico nessa história é que, enquanto cidadãos de bem são abordados por
policiais armados em alguns pontos das cidades, em outros pontos cidadãos de
bem estão sendo assaltados por bandidos armados, dirigindo motos, automóveis ou
à pé mesmo. Em comum a violência e o abandono.
Não
posso, como professor de Direito, depois de mais de trinta e seis anos de
magistério, ficar tranqüilo com o que vejo. Aliás, nem eu nem ninguém que
estude Direito, porque ao invés de ver
surgir o tão almejado Estado de Direito Democrático, ao que assisto todo dia e
cada vez mais é o uso de um modelo de ação estatal que não tem na lei maior, infelizmente, sua base.
Finalizo
com uma ironia lembrada por meu amigo Walter Ego: “Enquanto cidadãos de bem são violados dirigindo seus automóveis,
ladrões roubam e matam andando sobre
bicicletas, como acontece, por exemplo, rotineiramente na cidade do Guarujá”.
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Grato pela contribuição. Flávio